Em 2015, quando grande parcela da população mundial buscava compreender as intrincadas consequências da globalização aliada ao crescimento e consolidação dos meios digitais de comunicação, e, quando passamos a conhecer as estratégias escusas pelas quais grandes corporações alavancam seu lucro em detrimento de populações cujos países – mas também política e governos – apresentam pouca força ou interesse possuem em sua segurança, saúde e bem-estar, Margaret Atwood nos oferecia o irônico, um tanto quanto divertido, e profundamente sarcástico O Coração é o Último a Morrer.

Como explicar o desejo de tais pessoas de sabotar um empreendimento de tal magnitude e excelência? Exceto dizendo que eles são desajustados que alegam estar agindo como fazem no interesse da chamada liberdade de imprensa, a fim de restabelecer os chamados direitos humanos e sob o pretexto de que a transparência é uma virtude e o povo precisa saber.

Ao longo da narrativa que brinca com os mais peculiares e engraçados aspectos de clássicas histórias de conspiração, espionagem e traição, conheceremos Charmaine e Stan, casal que perdeu tudo no misterioso período de recessão em que incontáveis empresas fecharam as portas e deixaram para trás uma população de desempregados.

Sem meios para sobreviver e arrancados das mais tênues perspectivas de futuro, regiões inteiras daquele que conhecemos como Estados Unidos da América se tornaram perigosas e instáveis. Agora, Charmaine e Stan vivem e convivem dentro dos limites da lataria de um automóvel, se alimentando pouco, dormindo mal graças as constantes perseguições de grupos armados e esperando pelo próximo mísero e esparso salário da esposa, que conseguiu emprego num bar questionável numa região tão segura quanto todas as outras.

Assim como as mais estranhas brincadeiras do destino, é no momento em que a desolação cresce e as esperanças de Charmaine parecem ter desaparecido por completo, que uma promessa de futuro é oferecida… por meio de uma propaganda televisiva.

O Projeto Positron é um inovador, brilhante e promissor empreendimento que garante uma vida digna, livre da violência e insegurança da sociedade e ainda oferece acesso a empregos e residências a todos aqueles que se inscreverem para participar do modelo que, bem sucedido, poderia salvar a vida de centenas, milhares, milhões de pessoas. Tudo o que o casal precisa fazer é concordar com os Termos de Compromisso, Responsabilidade e Privacidade da empresa, aceitando, ao entrar no modelo piloto Consilience, se desligar completamente do mundo exterior enquanto vive sob vigilância constante.

Em Consilience/Positron, os cidadãos passam um mês em agradáveis espaços urbanos, convivendo com pessoas comuns que trabalham em empregos comuns e possuem residências pensadas para atender suas principais necessidades. No mês seguinte, todos se direcionam ao presídio, onde desempenham novas funções, convivendo em regime fechado – ah, a beleza da ironia – enquanto aqueles que finalizaram seu mês no presídio assumem suas tarefas e atividades na cidade modelo. Projeto curioso com limitação excessiva da liberdade individual e comunitária! Mas quem poderia reclamar quando se tem acesso à alimentação saudável, empregos, residências e um nível de segurança impossível de se conseguir na realidade que existe para além dos muros de Consilience/Positron?


É assim que, instigados pelas promessas de uma ascendente corporação, Charmaine e Stan entregam seus direitos de ir e vir, de comunicação e escolha para um projeto “bom demais para ser verdade”. E nossa história poderia finalizar-se com um adorável “viveram felizes para sempre”, não fosse a busca constante por poder e lucro, bem como expansão por novos setores de mercado, propostos pelos líderes dessa benéfica e tão altruísta corporação… e por um enxerido Stan que buscava descobrir a identidade daqueles que permaneciam em seu lugar nos meses em que permanecia na prisão.

Em sua ingenuidade e amadorismo, o percurso de Stan se alinha aos objetivos de um movimento dissidente que planeja expor parte da podridão que ocorre por trás do brilho, sorrisos e segurança de Positron, demonstrando não somente que o poder corrompe as bases das mais incríveis ideias, como a maneira com que os tentáculos de grandes corporações se interligam aos piores e mais sombrios empreendimentos.

O Coração é o Último a Morrer é um livro curioso. Embora existam questionamentos e reflexões acerca de nossa relação, enquanto indivíduos e sociedade, com as grandes corporações, Margaret Atwood preza pelos aspectos cômicos, irônicos e sarcásticos da narrativa. Deste modo, a história que se inicia bastante alinhada aos problemas e desafios da atualidade, logo se transforma em verdadeira trama de conspirações, missões perigosas, investigações e descobertas surpreendentes, alinhadas a uma sucessão de reviravoltas que conquistam o leitor por suas peculiaridades e carisma. Trata-se de um típico livro da escritora sem tratar-se de um típico livro da escritora, uma vez que apresenta elementos e características frequentemente empregados por Margaret e, ao mesmo tempo, parece expressar uma tentativa de mudança, de experimentar estratégias que permitiram a criação de uma história que consegue ser, na mesma medida, leve e profunda.

Com personagens encantadora e completamente despreparados para a complexidade das situações em que se encontram, o livro também nos permite perceber como, apesar de em nossas mentes acreditarmos possuir todas as respostas para todos os caminhos e consequências provenientes de todos os cenários possíveis, realizaríamos as mesmas escolhas e percorreríamos as mesmas trajetórias que Charmaine e Stan.

Não é à toa que o casal necessita de auxílio e orientação de pessoas com maior poder de escolha. Afinal, são as habilidades destes que garantem a sobrevivência do casal mais querido, humano, pamonha e contraditório que existiu. E aqui está a graça da narrativa! Para além de toda a bizarrice, escolhas questionáveis e conspirações de uma corporação problemática, existem duas pessoas – que não são exatamente pessoas, mas é como se fossem – que possuem seus próprios sentimentos, anseios, frustrações e dualidades. Pessoas que, como nós, muitas vezes não questionam o suficiente, não observam os contextos e realidades coexistem com as suas, que, ao enfrentarem suas próprias batalhas internas e externas, podem se deixar levar por situações que nunca passaram por suas mentes!

O Coração é o Último a Morrer entretém na mesma medida em que oferece aos leitores breves momentos para refletir, brincando com nossa capacidade de aceitar histórias tão inusitadas e absurdas que poderiam tratar-se da mais surpreendente verdade. Esse é um livro para mostrar a diversidade e habilidade narrativa de Margaret Atwood, comprovando que nossa vovozinha assustadora também pode ser divertida, irônica e sarcástica. Da mesma forma, é um livro para não nos acostumarmos pois, após dez livros lidos da escritora, essa foi a primeira vez que me deparei com uma história como essa!

Avaliação: 4 de 5.

  • The Heart Goes Last
  • Autor: Margaret Atwood
  • Tradução: Geni Hirata
  • Ano: 2022
  • Editora: Rocco
  • Páginas: 414
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