E se um dia você acordar e notar que, aquilo que você jurava que não faria a menor falta, colocasse seu mundo de cabeça pra baixo pela simples ausência? E se você tivesse os dias contados e entrasse num acordo com o diabo em pessoa? Mas acima de tudo, o que você estaria disposto a abrir mão para continuar vivendo? Essa é a pergunta que o jovem carteiro precisa responder, não apenas para ele, mas para seu mais novo amigo, o Diabo.
“Você alguma vez chegou a ver o Diabo? Pois eu vi! Ele não era todo preto nem tinha uma cauda pontiaguda, muito menos empunhava um tridente. Na verdade, assumia a aparência da pessoa para quem se revelava, o que fazia dele um verdadeiro doppelgänger.”
Descobrindo o diagnóstico de uma doença em fase terminal, sozinho na vida exceto pela fiel companhia de seu gato, ele recebe a indispensável proposta de onde menos esperava, um ser muito parecido com ele mas com trajes excêntricos e coloridos: a cada coisa que ele deixar desaparecer do mundo, terá um dia a mais de vida. O que vale a pena extinguir para continuar vivendo, seria essa uma vida tão valiosa assim para tirar de todo mundo?
Nos guiando no cotidiano abalado de alguém prestes a deixar o mundo, na companhia de um gato fiel e um Diabo amistoso e um pouco apaixonado em chocolate, descobrimos parte a parte as conexões, amigos e familiares que com o tempo nosso carteiro foi perdendo. Seja pela distância crua do afastamento, ou a distância intransponível da morte. Amores perdidos, amizades esquecidas e abandono.
Apesar da leveza da escrita, dos poucos capítulos e das poucas páginas em si, achei nessa “ficção de cura” algo que não cheguei a ver nos demais livros com essa mesma premissa: encontrei aqui um tom de reconhecimento, não com a morte iminente — apesar de saber que um dia virá para todos —, mas sim com as escolhas e o que faríamos caso nossos dias estivessem contados. Me peguei pensando, ao longo da leitura, o que eu abriria mão? Filmes? Chocolate? MÚSICA? Livros? Café? Não que uma vida não seja valiosa, mas o que mede ela a ponto de tirar do mundo algo que foi criado e levou anos para aperfeiçoar? Como colocar valor em algo que é único para cada um?
“Minha lista de contatos estava cheia de pessoas que eu conhecia, mas com quem não tinha nenhuma grande intimidade a ponto de telefonar para elas. No fim da minha vida, eu não tinha ninguém com quem valesse a pena conversar, e me dei conta de que tinha estabelecido apenas relacionamentos tênues e fugazes. Foi muito triste perceber isso àquela altura do campeonato.”
Emocionante na medida certa, com seus toques de comédia e profundidade. Se os Gatos Desaparecessem do Mundo é um livro para que curte ficção de cura, e talvez até mesmo para aqueles que já estão até saturados com o “boom” que foi essa nova fase da literatura. Pra mim, foi um dos melhores nesse gênero que eu já li, e se pegar outros nessa linha será difícil bater de frente. Saiu inteiramente marcado com post-its e marca texto, tal qual também saio eu, marcada da leitura com um quentinho no coração apesar do tópico abordado.
- 世界から猫が消えたなら
- Autor: Genki Kawamura
- Tradução: Tomoko Gaudioso
- Ano: 2024
- Editora: Bertrand Brasil
- Páginas: 176
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