Margaret Atwood é uma de minhas escritoras contemporâneas preferidas. Acredito que, considerando o tempo em que venho escrevendo resenhas e textos para o Estante Diagonal, vocês tenham percebido, se não comprovado, minha predileção por todo e qualquer conteúdo produzido pela mente dessa senhorinha canadense assustadoramente adorável. De distopias apocalípticas a poemas inusitados, de releitura de mitos gregos a revisitação de casos criminais, de comentários ácidos a críticas ferrenhas, seria de imaginar que me deparei com um pouco de tudo ao longo de minha jornada por entre as palavras da escritora. Mas contos… contos me foram grata novidade!
“É difícil aceitarmos a ideia de que nos tornaremos simples punhados de pó, e por isso queremos nos transformar em palavras. Um sopro na boca dos outros.”
Composto por quinze contos, sete pertencentes ao universo de Tig e Nell–Nell e Tig, a coletânea demonstra faces, habilidade de escrita, talento e características estilísticas de uma escritora que se reinventa a cada história, ressaltando que não apenas de tramas densas, críticas sócio culturais, temáticas pesadas e olhar afiado se faz uma romancista … aqui, de muita leveza, bom humor, sutileza e questionamentos existenciais se faz uma contista.
Em resumo, nas 271 páginas do novo livro que integra a obra da escritora, publicada no Brasil pela editora Rocco, encontramos uma reunião leve e bem humorada de histórias sobre a existência humana, ou quase humana, em sua mais sutil e delicada materialização literária.
Por entre tramas que interligam passado, presente e futuro, debruçamo-nos sobre não tão incômodos pensamentos acerca da vida e da morte. Aqui, a dualidade da existência adquire naturalidade sem perder em cuidado, demonstrando que, por mais que nos afastemos da ideia de que um dia tudo atinge seu derradeiro fim, a finitude nos cerca a todo momento e faz parte do processo aceitar os sentimentos que nos assolam, respeitando nosso tempo e honrando o daqueles que se foram.
A cada conto, em maior ou menor expressividade, nos deixamos levar pelo luto e pela saudade. Recordamos, numa espécie de metamorfose entre leitor e personagem, dos momentos que passamos com pessoas queridas, dos encontros e desencontros, das experiências nada individuais, da falta que tudo e nada deixou… assim, trilhamos o percurso das coisas no mundo por entre anedotas do cotidiano, memórias que nos formam enquanto indivíduos e trocas que moldam nossos corações. De maneira leve, respeitosa, somos colocados frente a frente com a brevidade e singeleza da existência.
Curiosamente, mesmo o mais sombrio capítulo, que parece remeter ao universo de O Conto da Aia, adquire ares de distanciamento seguro ao não se aprofundar em detalhes difíceis. O conto, que tem início antes do início e é finalizado sem final, carrega uma parcela de bom humor, nunca pesando a mão em críticas que nos afligem e fazem observar o mundo com olhos menos esperançosos … embora olhares atentos e acostumados às características de Margaret Atwood facilmente percebam as críticas por entre um novo casamento arranjado em contextos de fim de mundo.
Conheça mais livros de Margaret Atwood
No geral, para além das breves histórias únicas em seus universos e personagens, o tom e a atmosfera são sempre os mesmos e, ainda que as mudanças de tramas nos sejam prazerosamente bem vindas, são os contos relacionados aos personagens Tig e Nell, além do instigante Minha Mãe Maligna, que verdadeiramente conquistam nossos corações, reservando espaço especial em nossa mente por preferências pessoais, maior contato e identificação ou mesmo por manterem acessa aquela rara chama da representação fiel da vida.
São esses os contos que reforçam e ressignificam a temática da experiência e vivência do luto, do reencontro com o que ficou daqueles que amamos, do vazio e saudade que assola o coração daqueles que ainda (re)existem. São eles que nos permitem identificar em pequenas ações cotidianas, sentimentos tão universais. São eles que nos confrontam com a única certeza que temos desde nosso primeiro suspiro no mundo, a de que um dia nós e os nossos também partiremos… e tudo o que sobrará são as lembranças daqueles que sobreviveram ao tempo que nos foi oferecido.
E assim percorremos páginas e percorremos vidas. Trilhando um caminho leitor que se deixa tocar pelas palavras de escritores que vivem e revivem nos livros que deixaram para trás. Da mesma maneira, aqueles que amamos vivem e revivem nas histórias que nos deixaram, nas memórias que guardamos até que nosso próprio para sempre se mostre finito e outros tomem para si a missão de manter viva a existência daqueles que, um dia, deixaram sua marca nas pequenas e grandes memorabílias que persistem ao tempo, a vida e a morte.
- -
- Autor: Margaret Atwood
- Tradução: Clóvis Marques
- Ano: 2024
- Editora: Rocco
- Páginas: 272
- Amazon